São coisas da vida, dizem eles, dizemos nós

café

“(…) Os mortos se decompõem sob o relógio das cidades…” (García Lorca, Federico. Ode a Walt Whitman. 2001, p. 205)


Não vai tempo largo e te tornam imbecil. Apenas por ter de atender a duas-três exigências e comprar pão, sempre um outro dia, tornam-te imbecil. E teus ombros descaem, pouco a pouco, em velocidade não percebida por teus olhos. É verdade, és já um quase imbecil acabado, semiformado. Aos olhos deles, tens qualquer coisa de exemplar e de beleza, é provável que, diante de suas presenças mornas, intácteis, haja em ti luminescência. Tu, apesar, não sabes o que forjar com essa sombra, fazendo de ti vulto que chora e remói a própria angústia no silêncio do banheiro. Ante eles, és o que não és. Nem por isso representa. Eles, por conta própria, concebem em ti essa imagem que teus próprios olhos não alcançam. Não por má vontade, não te perturbes em dizer. São coisas da vida, dizem eles, dizemos nós. Aos bocados, repetindo dia a dia as mesmas tolices, começamos a acreditar numa e noutra, inventando mais, para cada medo novo, uma bobagem nova. Vamos nos matando como podemos, não desconheço. Amanhã te levantarás, uma xícara de café, uma aflição parida no alvorecer, outra palavra-paliativo. Ao menos isso. Enquanto um e outro suportam, seus dentes em riso, o cotidiano cinza com o auxílio de Fluoxetina, tens sempre uma palavra-distanásia. Fazes lembrar aquela mulher, amiga nossa envelhecida pelo tempo intrêmulo, que, maldizendo a vida, desvivia vagarosamente, sorvendo a dor com volúpia. No fundo, queria dizer, Eis aqui alguém que sofre. Tu, nem isso. Até sabes rir. Aprendera a custo, não carece explicação. Bem sei. Um exercício e tanto! Teu filho, aquele? Corre como se fosse livre. Coisa da idade! Breve substituirá o pai e teus olhos, talvez esquecidos do que foste, sorrirão, satisfeitos. Porque a memória falha e o tempo, para ti também intrêmulo, distorce imagens, nos faz enxergar obra de arte onde há apenas esboço, bosquejo de uma possibilidade impraticável. Também a ti o calendário cuidará em transformar em qualquer coisa próxima e compreensiva aos que, também frutos maduros, podres, te fizeram imbecil. E teu filho, que corre como se fosse livre, te seguirá os passos e fará com os filhos dele o que já tens como certo para esses pés que ainda voam. E porque não morrerão jovens, tomarão espaços, em universidades dirão tolice qualquer em elogio aos ensinamentos passados, às lições atávicas do sangue de seu sangue. E darão testemunho dessa miragem que a nós diziam vitória, a outros, glória e a todos, conforto.

Sim, o café. Não me esqueci. Única quentura, nestes dias-gelo. Como estava por dizer, não vai tempo largo e te tornam imbecil. Apenas por ter de atender a duas-três exigências e comprar pão, sempre um outro dia, tornam-te imbecil. Aprendemos a repetir sentenças, divisas e, em cada uma, procuramos harmonia. A instrução é a luz do espírito. Depois de fartos, não faltam pratos. Quem meu filho beija minha boca adoça. Com tempo, tudo se cura. Longe da vista, longe do coração. Mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto. E justificamos tudo, por manejar o verbo. Lentamente, lentamente, quase um imbecil acabado, vês teu filho correndo e já te sabes carrasco de uma chama que principia. Antes, recordo, vez ou outra te ouvia a indagar, querendo saber por que diabo é que se aceita tudo, que se acaba em árvore que, para dar fruto, tem de murchar, não partir, criar raízes e, na carne desse fruto, conduzir o veneno que paralisa braços e pernas, que escolhe palavras específicas, dissimuladas e faz chorar ao fim de todo dia. Nossas palavras-paliativo, quantas não foram! E serão, claro, claro. Porque precisamos suportar. Desertar, eles não sabem, invertem a ordem das coisas, desertar requer coragem. Coragem que não temos, que fará de nossos filhos desdobramentos do medo que somos, já parte de nosso corpo. Possuímos, ao revés, muitas certezas, estamos cheios delas, mortos por elas. Mas não digamos nada, calemos, ninguém precisa saber. Aos olhos deles, tens qualquer coisa de exemplar e de beleza.

Vamos nos matando como podemos, isso é o que é. Sim, o café, não me esqueci.

Breno S. Amorim
Petrolina, 29 de maio de 2017.

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